quarta-feira, 13 de junho de 2007

Á MERCÊ DOS MERCEDES





Alberto de Oliveira, professor reformado, tem uma paixão : modelos antigos da Mercedes-Benz. Fá-los à escala, até ao mais pequeno pormenor, seguindo os planos que lhe são enviados pelo construtor alemão. O resultado são miniaturas perfeitas e com preço incalculável.

Este homem tem mais Mercedes que uma praça de táxis. Chama-se Alberto de Oliveira, reformou-se depois de dar aulas no ensino particular durante 38 anos e é um germanófilo assumido, m dos melhores amigos do senhor Benz. O amor de Alberto de Oliveira pelos carros alemães vai ao ponto de passar 1500 horas com um Mercedes, enfiado na pequena oficina na casa do Areeiro.





Era miúdo e gostava de brincar com carrinhos de folha, daqueles que havia dantes, só que os achava sem gosto, demasiado toscos, pouco representativos dos originais que circulavam pelas ruas de Lisboa. Com a idade e muito jeitinho, o pequeno Alberto começou, então, a “introduzir” modificações nas miniaturas. De início, trabalho de pincel e mudança de cor. Mais tarde, uns efeitos especiais sobre as formas e os carrinhos de Alberto de Oliveira eram os mais giros do bairro.
Encerrada esta primeira fase, considerada de retoques, a arte e o engenho evoluíram: Alberto perguntou-se porque não se lançava na construção dos seus próprios brinquedos. Meu dito me feito. Num paralelepípedo de madeira esculpiu o seu primeiro modelo sólido, representando um Fiat 1500 de 1935, uma bomba dos anos trinta, só superado pelo seu irmão 1100 que era considerado o Cooper daqueles tempos.




Com muito labor de lixa, formão e lima, outros carros foram nascendo das mãos do jovem Alberto de Oliveira à medida do tempo e da paixão pelas formas dos estilistas de então. Só anos mais tarde se abalançou a construir uma miniatura oca, isto é, com formas interiores e exteriores. A honra coube ao célebre Renault Joaninha, que ainda brilha no armário da “sala automobilística” do seu criador. A carroçaria tem a forma exacta do automóvel. Os frisos foram minuciosamente reproduzidos com a ajuda de um pincelinho e hoje, passados tantos anos, Alberto Oliveira distancia-se e admira os olhos que lhe permitiram uma pintura tão precisa. “Sustinha o fôlego para pintar cada linha. Já viu como é difícil traçar uma linha recta sobre um volume curvo?”. Não é difícil; é milagre!
Mal sabiam Daimler e Benz, em 1886, que esta “joaninha” da concorrência seria a mãe dos mais belos modelos de Mercedes, feitos em madeira, feitos desde agora e até agora por Alberto de Oliveira. Mas foi. As poucos, a técnica apurou-se e, fotografia daqui, memória dali, os gloriosos Mercedes de antes e o pós-Guerra foram nascendo, na oficna do professor.


Alberto de Oliveira dirigia, então, dois colégios, gerindo igualmente uma policlínica. Trabalho não lhe faltava “aproveitava cada quarto de hora para os carrinhos porque era um “hobby” muito agradável e extremamente relaxante. Quando estou a trabalhar num carro até me esqueço de comer” explica frisando que era um “hobby”. Hoje é um vício que o leva a pensar constantemente em materiais novos para compor as suas miniaturas, a andar olhando para o chão a ver se encontra um fio de telefone para compor um friso de um estofo, percorrer a Feira da Ladra para adquirir válvulas de rádio que quebrará só para extrair uma rede fina metálica igualzinha à dianteira de um Mercedes. A própria mulher de Alberto de Oliveira, também professora aposentada, colabora esporadicamente na recolha de “peças” e quando vai ás compras, a sua vista muito apurada detecta nas falhas da calçada, aqui e ali, um pedaço de qualquer coisa, que recolhe e oferece ao marido: “Vê lá se isto te serve para os teus carrinhos”.
“Um dia senti a necessidade de trabalhar com outra consciência”, conta o professor. “Andar a fazer modelos aproximados”, prossegue, não o satisfazia. Queria ser fiel aos desenhos das máquinas. “Escrevi então para a Alemanha, para a Mercedes e disse-lhes que era um amante da marca e que precisava de dados”, por aí fora.
Os alemães ficaram encantados. Pelo menos, a carta de Alberto de Oliveira era redigida em francês e a resposta veio num português correctíssimo, acompanhando fotocópias dos planos originais dos modelos e vasta documentação fotográfica. A única condição era o posterior envio para a RFA de retratos dos carrinhos na escala de um por oito. Ah, e que os planos não fossem entregues a terceiros.



A relação directa com o construtor alemão facilitou incomensuravelmente a vida de Alberto de Oliveira, permitindo-lhe fazer Mercedes à escala com a máxima fidelidade, inteirar-se da história dos modelos e descobrir até pequenos pormenores que passavam despercebidos à casa-mãe. Este último aspecto tem por exemplo o caso do Mercedes 540K Roadstar, que Alberto de Oliveira construiu segundo os traçados originais fornecidos pela Benz. Analisados os planos, comparadas as medidas, sobravam centímetros. O professor escreveu para a RFA a dar conta do “gato” e a Mercedes pediu desculpa: tinham-lhe enviado os planos do Roadstar, sim, mas de um exemplar único construído para um xeque árabe, que possuía um compartimento superior para permitir a instalação de um depósito sobre o estribo, destinado a água, quiçá uísque. Espantados estavam os germanos com a meticulosidade de Oliveira na análise dos modelos. A explicação é evidentemente: amor à causa.





Á escala de um por um, Alberto de Oliveira sempre conduziu BMW, o gosto pelos Mercedes fica pela miniatura, mas brilham-lhe os olhos quando se fala dos modelos que mais aprecia. “Os carros dos anos de ouro é que dão luta”, é que são individuais, desenhados pela beleza. “Modelos actuais não me dão prazer, porque basta pegar num paralelepípedo, rebaixar a frente e elevar a traseira e os carros ficam todos quase iguais”, lamenta. Depois passa à apresentação dos seus “filhos”, belos de tirar a respiração, sublinhando neste 540 k de 1936, a existência de um compressor (“E ainda dizem que agora é que há o turbo!”), neste 320 de 1937 com forro a veludo (“Um material muito difícil de trabalhar porque se esfarela todo”), mas, com entusiasmo superior, elogia é os cromados que reproduz amorosamente em latão polido e banhado em crómio: “Já viu coisa mais bonita? E não são cromados à americana. É uma elegância!”)




O carro de Hitler, por exemplo, um Grossen Mercedes Cabiolet F, em que o chefe nazi se passeava com mais sete ou oito acólitos. Uma elegância, que Alberto de Oliveira está agora a construir para um cliente inglês. “Em Portugal tenho alguns clientes, mas o meu objectivo não é o negocio”, afirma o professor. Os coleccionadores pedem-lhe peças, nomeadamente nas escalas ditas normais, um por 43 e um por 49, e Alberto de Oliveira cede ou não o modelo cobiçado. Do estrangeiro vêm encomendas mais volumosas, até porque “lá fora o modelismo está mais desenvolvido”, até na possibilidade de obter materiais de construção.




Os pneus são o maior quebra-cabeças do homem dos Mercedes. É que não os há para a dimensão dos carros que executa. Aqui há tempos, para conseguir calçar um lindo 300S, de 1954 – o modelo mais recente que construiu e dotou, inclusive, de uma telefonia Telefunken, de teclas, como o original possuía – teve que contar uma mentira piedosa a uma fábrica francesa que lançou um “kit” da “arrastadeira” Citroen, para conseguir quatro pneus com o rasto de antanho. Depois, há que edificar com alfinetes os raios das rodas, imaginar como é que os pontos de costura dos estofos pode ficar à escala se não há máquinas de costura miniaturais e usar pasta de dentes para polir o plexiglass dos faróis. “O latão também é uma maçada porque não se consegue comprar só um bocado, é tudo aos quilos, o que representa grandes investimentos”.




Talvez pelo investimento (sem contar com o afecto que cada carrinho daqueles transpira) seja impossível a Alberto de Oliveira vender um dos seus modelos. Imagine-se 1500 horas de trabalho a 5 euros à hora (o preço mais baixo) e calcule-se quanto não custaria o Mercedes 320 de 1937, de quatro portas, que exigiu a construção de uma moldura de metal para as portas, dado que a dobradiça é comum a cada par. E, nas 1500 horas de trabalho, Alberto de Oliveira não contabiliza todas as outras que perdeu a inventar um processo de colar os gomos dos estofos um por um, ou aqueles momentos em que, passando ela zona de um acidente de viação, recolheu cuidadosamente os fragmentos de vidro cor de laranja de um pisca que hoje abrilhantam os guarda-lamas bem lançados do Mercedes 220, o táxi dos anos 60. Sem preço, estes Mercedes!

António Costa santos na revista do Expresso de 15 de Junho de 1991


Alberto de Oliveira 2007